Nós sabemos que os espaços de atuação feminina no mercado de trabalho só começaram a aumentar recentemente. E, embora seja um ambiente composto majoritariamente por mulheres, o meio editorial não é muito diferente. Mas afinal, o que é ser uma editora no Brasil? Quais são os desafios enfrentados? Como é a rotina?
No último episódio do Podcast Bom Saber, nossa apresentadora, Isabela Gomes, entrevistou as editoras Flávia Alves Bravin e Fabiana Dias da Rocha, para saber um pouco mais sobre o dia a dia e a carreira delas. O episódio foi parte da campanha Mulheres em Pauta.
Flávia Alves Bravin, head da Saraiva Educação, é formada pela Universidade de São Paulo (USP) e membro do Conselho de associações como ABDR, Abrelivros e Snel, além de membro atuante do Conselho da Minha Biblioteca.
Já Fabiana Dias da Rocha é editora jurídica, formada em Direito pela Universidade Paulista (Unip) e pós-graduada em Direito Civil pela Universidade Presbiteriana Mackenzie. Continue a leitura, e confira os melhores momentos da entrevista com essas duas importantes mulheres do mercado editorial brasileiro!
Qual é a relação que vocês possuem com os livros e com o mercado editorial?
Flávia Alves Bravin: Quando criança, me lembro que meu pai sempre foi um leitor voraz, na minha casa havia inúmeras obras, posso dizer que eu cresci no meio dos livros. E, por isso, desde a infância já pude compreender a importância da educação!
De certa forma, eu comecei cedo a ser editora, fazia livrinhos — pegava revistas que tinham em casa, colava figurinhas e vendia para o meu pai — e já ganhava meu próprio dinheirinho. E isso durou a vida inteira, tudo o que eu fiz sempre teve um pedaço de livro.
Mesmo quando eu era aluna e não prestava muita atenção na aula, depois quando chegava em casa e ia ler a matéria da escola, sentia que os livros conversavam comigo. E foi graças a eles,que tive um bom desempenho.
O mais interessante é que essa relação íntima com os livros, se manteve por todas as fases — e áreas — da minha vida. Tudo o que eu tenho, minha profissão, meu salário, minha identidade e meus valores, eu aprendi e ganhei por meio dos livros.
Fabiana Dias da Rocha: A minha relação com os livros também está muito ligada à educação. Como eu estudava muito, sempre tinha um livro comigo. Além disso, durante toda a minha trajetória, vi os estudos como a forma mais rápida de garantir uma vaga na universidade.
Então, desde criança, eu tinha um medo de estar afastada dos livros e da escola. E acho que isso fez com que eu criasse consciência da importância de sempre estar estudando, de trabalhar com os livros, e de me envolver com esse processo que tanto interfere na educação.
É muito grandioso. Por isso, a minha relação com o livro parte da percepção de que ele é uma das mais poderosas ferramentas de estudo, formação, conhecimento, aprimoramento e compartilhamento de idéias.
Saiba mais: Entenda o que é leitura digital e quais são os principais benefícios!
Fabiana, conta mais: como editora, como é a sua rotina? Como funciona o processo de edição?
Fabiana Dias da Rocha: A rotina de uma editora envolve bastante leitura e análise de conteúdo, tanto que eu costumo brincar que é um falso silêncio. Porque, se você passa pela minha mesa de trabalho, em muitos momentos eu tô analisando uma lei super concentrada, focada no computador, e fica aquele silêncio.
Mas a minha cabeça está em um movimento de análise constante, para conseguir entender aquele trecho que eu estou lendo vai entrar no livro, como ele impacta o consumidor e se cabe uma nota ou uma atualização no índice. Então nossa rotina exige muita leitura, com intensidade mental e intelectual.
Dentro da rotina de uma editora de legislação, por exemplo, nós também fazemos a leitura do Diário Oficial, que é de onde vem uma parte do material. E nós temos que fazer o fluxo de gerenciamento de provas, uma etapa da atualização do livro.
Funciona assim: eu recebo o arquivo para atualizar, coloco todas as informações, como atualizações, apontamentos, etc., e envio para o departamento de produção. Lá, é feita a diagramação e a revisão desse material.
Depois, ele volta para o editor, ou seja, para mim, que faço toda a análise do conteúdo de novo e insiro mais coisas. Daí é preciso fazer essa gestão de fluxo. Quando nós encerramos essa etapa, chegamos no arquivo final. Ou seja, o livro pode finalmente ir para a gráfica e, depois, chegar na mão do consumidor.
Então a editora tem que ter muito planejamento, tem que estar atenta aos prazos e calcular o tempo que cada etapa pode levar. Por fim, é importante ter uma linguagem mais fluida com todos os colegas envolvidos, com as áreas pares, os autores, todo mundo. E claro, ter uma visão criteriosa do cliente e do mercado também é fundamental.
Quanto tempo dura, mais ou menos, o processo de edição de um livro?
Fabiana Dias da Rocha: Depende muito da complexidade da obra e da previsão de chegada dela no mercado. Por exemplo, hoje trabalhamos com livros que têm que chegar para a graduação, então temos que ter um cronograma para que, em janeiro, esse livro esteja pronto.
Mas, em geral, depende muito do tempo que ele tem que chegar no mercado. Assim, nos organizamos com base naquela data.
Flávia, como é sua rotina de head de grandes editoras e outras soluções voltadas para educação?
Flávia Alves Bravin: Na verdade, eu acho que não tem uma rotina. Nós tentamos ter alguns rituais para dar conta de tudo, são muitos assuntos que precisamos olhar. É quase como se fosse o tempo todo tentando juntar passado, presente e futuro, pensando nos resultados, nas pessoas, na cultura e na estratégia.
Acaba que a rotina é pegar tudo que nós temos dentro de casa, ou seja, na editora, e também o que temos fora de casa, no mercado, nos clientes, e fazer todas essas reuniões. Isto inclui entender as metas, os planos de ação, os papéis do marketing, preços e a comunicação.
Ser head de uma editora de livros é muito parecido com ser head de outros segmentos, com a diferença de que eu trabalho com algo muito profundo, que é o mercado educacional.
Um momento marcante da sua carreira, Fabiana?
Fabiana Dias da Rocha: Um momento que marcou a minha carreira foi a publicação do Novo Código de Processo Civil. Esse código foi muito esperado no meio jurídico e no meio editorial, e, quando ele saiu, eu fui uma das editoras que teve a oportunidade de acompanhar o processo de tramitação, aprovação e publicação desta lei.
No fim, ele deu origem a dois livros: nós publicamos uma versão pocket e uma versão comparada. Então eu pude ver dois livros nascerem do zero, com uma lei de tamanha relevância para a sociedade. Depois, eu vi esse livro chegar no mercado, a reação das pessoas, do nosso público, e isso me marcou muito.
Eu lembro que esse livro foi publicado em março e em abril eu tive a surpresa de um professor com quem eu já não tinha mais contato, do meu programa de especialização, me ligar e falar “Fabi, estou com o livro em mãos, parabéns para o time da Saraiva, parabéns pelo livro, eu estou muito feliz de você ter feito parte desse processo”.
E aí foi significativo para a minha carreira, porque eu fui de uma ponta a outra: vi o livro nascer e vi o resultado na mão do consumidor. E ainda tive o reconhecimento de uma pessoa tão querida, que teve a gentileza de me ligar e compartilhar as impressões da obra.
E qual momento você destaca na sua trajetória, Flávia?
Flávia Alves Bravin: São tantos, eu tenho 25 anos de mercado. Mas acho que vou voltar para o comecinho da carreira, porque os primeiros sempre são marcantes. Para quem está ingressando agora na carreira, fica esse recado: o primeiro livro que você edita é difícil de esquecer.
Eu entrei nessa área tendo feito Administração. E um dos primeiros livros que peguei para editar — comecei editando vários livros ao mesmo tempo — já tinha passado por várias edições em outra casa editorial.
Era um livro de matemática financeira. E eu aprendi fazendo. Acho que ser editor é você se colocar no papel do professor que vai usar aquele livro para dar uma aula, mas também do aluno que vai usar para aprender.
Então eu falei “Vou ter que resolver todos os exercícios para ver se está claro, se eu consigo entender a matéria”. E comecei a resolver e ler e encontrei muitos erros. Pensei: “Não pode ser. Não pode ter passado tanta coisa assim.”
Escrevi para o autor e, de fato, foi super especial, porque existe um valor nessa leitura ativa e nesse processo de se colocar no papel do aluno. Aquilo me fez sentir empoderada, porque eu sabia que tinha ido a fundo e tinha feito uma contribuição para o material.
Panorama do mercado editorial:
Segundo a pesquisa Fatos da Leitura no Brasil, que mensura o comportamento dos leitores em âmbito nacional, as mulheres leem mais do que os homens.
A última edição do estudo, realizada em 2015, revelou que 59% das mulheres do país são leitoras, enquanto, no gênero masculino, a taxa de leitores é de 52%. Entretanto, a maior adesão das mulheres aos livros ainda não se reflete na representatividade do mercado editorial.
Leia mulheres: confira 10 autoras incríveis para prestigiar!
Então queria saber de vocês: quais são os motivos dessa disparidade? E quais estratégias podem ser adotadas para solucionar o problema?
Flávia Alves Bravin: Quando olhamos a mulher em termos gerais, ou seja, em termos de estudo e de leitura, é visível que nós tendemos a estudar mais que os homens. E acho que isso é uma característica nossa, por acharmos que precisamos ir além, compensar nossa carreira com os estudos e a leitura.
Acho que tem uma parte muito comportamental, e isso se traduz em dados: em vários países, a estatística mostra que a mulher lê mais e com mais frequência que os homens. E, no mercado editorial, existe o privilégio de ter muitas mulheres. A base do mercado é muito feminina, existe uma atração para a profissão.
Só que nós nos perdemos no meio do caminho. Conforme a hierarquia e autoridade sobem, a base que era muito feminina e muito bem preparada, por diversos motivos — escolha, estilo, preconceito, vergonha de se apresentar —, vai se tornando masculina. Os homens vão passando na frente.
Fabiana Dias da Rocha: Eu concordo com você, isso acaba acontecendo mesmo. E acho que também vem do histórico. Se você pensar que, lá no século XIX, uma mulher, para publicar um livro, tinha que usar um pseudônimo masculino, você percebe que essa disparidade está enraizada.
Por mais que, hoje, ninguém precise ter um pseudônimo masculino, uma mulher pode publicar um livro sem esse artifício, isso deixou marcas. E o caminho, para tentarmos sanar isso, é assumir que existe esse desequilíbrio.
Por exemplo, eu sou uma editora mulher, a minha liderança é feminina, fui treinada por mulheres, mas tenho a consciência de que sou um recorte do mercado. Então acho que nós precisamos ter consciência deste desequilíbrio. Trazer esse assunto pro centro da mesa, isso deve ser falado e discutido cada vez mais, para sanarmos essa disparidade histórica.
A arte da confiança
Flávia Alves Bravin: Tem um livro da Benvirá que chama A arte da confiança, e ele mostra que, quando você tem uma vaga profissional, a mulher provavelmente vai na lista de requisitos, e marcar cada um deles.
Até ela encontrar um que ela não tem, e pensar “Ah, não tenho isso, não vou concorrer”. Mas, se fosse um homem, ele ia pensar “Ah, não vai precisar tanto [dessa característica]” e concorreria.
Esse livro aponta que um homem só precisaria ter 60% dos requisitos para se considerar apto para uma vaga. E aí você tem mais homens se candidatando para trabalhos do que mulheres, porque elas não se sentem preparadas, não concorrem e não se jogam nas oportunidades.
Qual conselho vocês dão para as mulheres que desejam ingressar no mercado editorial?
Fabiana Dias da Rocha: Meu conselho é: se joguem. Mas, além disso, se você quer ser editora, outro conselho que eu dou é: observe as pessoas, observe as relações sociais.
Porque, enquanto editora, você vai estar exposta a uma gama de conteúdo gigante, e sua função vai ser orquestrar os conteúdos para que eles cheguem aos leitores da melhor forma. Quando você desenvolve esse olhar, ele faz toda a diferença no processo de construção e edição do livro.
Flávia Alves Bravin: Para complementar, eu acho que, além de se jogar, que é o primeiro passo, como a Fabi falou, a mulher precisa perseverar. Porque não vai ser fácil.
Então, se é isso que você quer, e esse é um mercado que tende a ser mais feminino, é preciso pensar que também é um mercado mais fechado, em que os caminhos não são tão claros, e você nunca sabe quando vai abrir uma vaga e em qual editora.
Daí a necessidade de fazer contatos, freelas, tentar fazer trabalhos voluntários. Porque nem todo mundo fez um curso, e até é válido fazer um curso na área, mas recomendo começar a ser editora em uma ONG, em algo voluntário, dentro do que faz sentido para você, para você ir ganhando confiança e não ter vergonha.
Não espere se sentir pronta, e, na hora que surgir a oportunidade, se jogue mesmo. Porque o editar nós aprendemos editando, então o caminho é esse: tentar até conseguir.
Quanto às movimentações do mercado editorial, qual é o futuro da profissão de editora e do mercado dos livros?
Flávia Alves Bravin: Passamos por uma nova revolução no mercado editorial. Acho que já passamos por várias, muito fortes. Por exemplo, o e-commerce, a autopublicação, que foi uma revolução bem forte, de canal, de pulverização. E, para mim, a nova revolução, que já está afetando o presente, é a Inteligência Artificial.
Nós, hoje, conseguimos ir pro chat GPT: gerar textos, encontrar conteúdos, gerar perguntas. E é aqui que fica mais forte o trabalho de curadoria, de deter plágio, de originalidade, da metodologia, da cadência, de ser coerente.
Porque o texto pelo texto está virando uma commodity, então o mercado editorial precisa mostrar que o que está em um livro, nenhuma IA e algoritmos conseguiriam fazer. Justamente porque por conta do valor autoral, um valor que vai além da programação, é também o valor do editor, do diagramador, de todo mundo que pensa o livro.
Para mim, é de novo checar qual é o valor agregado que uma editora coloca no conteúdo, e entender que ele está muito além dos conteúdos gerados pelas máquinas.
Fabiana Dias da Rocha: Acho que o maior desafio do editor, como a figura responsável por fazer a curadoria do conteúdo, é possuir a certeza da fonte, da profundidade, de que aquele material está direcionado para um público específico e da veracidade da análise que foi feita.
Essa coisa da pulverização desordenada da informação, sem essa qualidade, é muito sensível. Nosso desafio mesmo é equalizar cada vez mais esses pontos, para evidenciar a importância do trabalho da edição e da figura do editor, como fundamentais.
Faço até uma provocação: quantos editores nossos ouvintes e leitores conhecem? Eu arrisco dizer que são poucos. Mas quantos já tiveram acesso ao livro de alguma forma? Aposto que muitos.
Ou seja: o alcance do trabalho do editor é muito grande, e é muito importante porque, se houver uma falha ali, isso gera consequências bem sensíveis. Uma falha no conteúdo pode atrapalhar a formação de uma pessoa, a realização de uma prova. Portanto o nosso desafio vai ser, cada vez mais, reforçar essa importância e esse alcance.
Esperamos que você tenha gostado conhecer mais do mercado editorial e da nossa campanha Mulheres em Pauta. Agora, continue no blog e confira a entrevista com Marcelo Sacramone sobre Falência e Recuperação das Empresas!